3 de mai. de 2009

EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS, CURRÍCULO E ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS. VERA MARIA CANDAU.














Introdução


A preocupação com a educação em Direitos Humanos vem se afirmando cada vez com maior força no Brasil, tanto no âmbito das políticas públicas como das organizações da sociedade civil. As iniciativas se multiplicam. São realizados seminários, cursos, palestras, fóruns, etc, nas diferentes partes do país, promovidos por universidades, associações, movimentos, ONGs e órgãos públicos. Sem dúvida, a implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos tem exercido uma função fundamental de estímulo, apoio e viabilização de diversas atividades. No entanto, é possível afirmar que a grande maioria destasrealizações tem enfatizado a análise daproblemática dos Direitos Humanos nas sociedades contemporâneas, no plano internacional e no nosso contexto, assim como o aprofundamento da gênese e evolução histórica do conceito de Direitos Humanos. Em geral, uma reflexão sobre em que consiste a educação referida a esta temática se dá por óbvio, não se problematiza, nem se articula adequadamente a questão dos Direitos Humanos com as diferentes concepções pedagógicas. Abordar esta problemática constitui o objetivo central do presente trabalho. Para que educar em Direitos Humanos?
Em relação a esta problemática, consideramos de especial relevância a pesquisa promovida no continente latino-americano pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) da Costa Rica, no período de
1999-2000 (Cuellar, 2000), orientada a fazer um balanço crítico da educação em Direitos Humanos nos anos 90 na América Latina, coordenada pelo professor chileno Abraham Magendzo, um dos mais importantes especialistas em educação em Direitos Humanos no continente.
No processo de construção do balanço crítico, foi indicado um pesquisador ou pesquisadora dos países que integraram a investigação - Argentina, Chile, Peru, Brasil, Venezuela, Guatemala e México-, para realizar um estudo de caso no seu respectivo contexto. Uma vez realizados os estudos de caso de caráter nacional, estes foram enviados a todos os pesquisadores e foi convocado um seminário pelo IIDH em Lima, Peru, no mês de novembro de 1999, para discussão e elaboração da síntese final do processo e levantar questões consideradas importantes para o desenvolvimento da educação em Direitos Humanos no continente a partir do ano 2000. Apresentaremos brevemente os principais temas discutidos. Um primeiro bloco se relacionava ao sentido da educação em Direitos Humanos no novo marco político, social, econômico e cultural, isto é, na transição modernidade/pós-modernidade, no contexto de democracias débeis ou de “baixa intensidade” e de hegemonia neoliberal. A temática de educação em Direitos Humanos nos anos 80, principalmente nos países que passaram por processos de transição democrática depois de traumáticas experiências de ditadura, como é o nosso caso, foi introduzida como um componente orientado ao fortalecimento dos regimes democráticos.
No entanto, a realidade do continente no novo milênio apresenta outra configuração. O clima político-social, cultural e ideológico é diferente. Vivemos um contexto de políticas neoliberais, de debilitamento da sociedade civil, de indicadores persistentes de acentuada desigualdade social, de discriminação e exclusão de determinados grupos socioculturais e falta de horizonte utópico para a construção social e política. Por outro
lado, em contraste com os anos 80, em que a maior parte das experiências de educação em Direitos Humanos foram promovidas por ONGs e algumas administrações públicas de caráter local consideradas “progressistas”, a década atual está marcada por uma grande entrada dos governos, no nosso caso do governo federal, na promoção da educação em Direitos Humanos. Neste novo cenário é importante analisar e debater as questões
relativas ao sentido da educação em Direitos Humanos e os objetivos que pretende alcançar. Em relação à polissemia da expressão educação em Direitos Humanos, os pesquisadores afirmaram a importância de não se deixar que esta expressão seja substituída por outras consideradas mais fáceis de serem assumidas por um público amplo, como educação cívica ou educação democrática, ou que restrinjam a educação em Direitos Humanos a uma educação em valores, inibindo seu caráter político. Por outro lado, afirmaram, hoje a educação em Direitos Humanos admite muitas leituras e esta expressão foi se “alargando” tanto que o seu sentido passou a englobar desde a educação para o transito, os direitos do consumidor, questões de gênero, étnicas, do meio-ambiente, etc, até temas relativos à ordem internacional e à sobrevivência do planeta. Tendo-se presente esta realidade, corre-se o risco de englobar tantas dimensões que a educação em Direitos Humanos perca especificidade. Tornando difícil uma visão mais articulada e confluente, terminando por se reduzir a um grande "chapéu" sob o qual podem ser colocadas temas muito variados, com os mais diversos enfoques. Ao final do seminário se chegou ao consenso de que era importante, na década que se iniciava a partir do ano 2000, reforçar três dimensões da educação dos Direitos Humanos.
A primeira diz respeito à formação de sujeitos de direito. A maior parte dos cidadãos/ãs latino-americanos tem pouca consciência de que são sujeitos de direito. Esta consciência é muito débil, muitos grupos sociais – inclusive por ter a cultura brasileira e latino-americana em geral um caráter paternalista e autoritário – consideram que os direitos são dádivas de determinados políticos ou governos. Os processos de educação em Direitos Humanos devem começar por favorecer processos de formação de sujeitos de direito, a nível pessoal e coletivo, que articulem as dimensões ética, político-social e as práticas cotidianas e concretas. Outro elemento considerado fundamental na educação em Direitos Humanos é favorecer o processo de "empoderamento" (“empowerment”), principalmente orientado aos atores sociais que historicamente tiveram menos poder na sociedade, isto é, poucas possibilidades de influir nas decisões e nos processos coletivos. O "empoderamento" começa por liberar as possibilidades, a potência que cada pessoa tem para que ela possa ser
sujeito de sua vida e ator social. O "empoderamento" tem também uma dimensão coletiva. Trabalha na perspectiva do reconhecimento e valorização dos grupos sócio-culturais excluídos e discriminados, favorecendo sua organização e participação ativa na sociedade civil. O terceiro elemento diz respeito aos processos de transformação necessários para a construção de sociedades verdadeiramente democráticas e humanas. Um dos componentes fundamentais destes processos se relaciona a "educar para o nunca mais", para resgatar a memória histórica, romper a cultura do silêncio e da impunidade que ainda está muito presente em nossos países. Somente assim é possível construir a identidade de um país, na pluralidade de suas etnias, e culturas. Estes três componentes, formar sujeitos de direito, favorecer processos de empoderamento e educar para o “nunca mais”, foram considerados prioritários na América Latina, referência e horizonte de sentido para a educação em Direitos Humanos, de acordo com a proposta do grupo de pesquisadores latino-americanos que participaram do estudo. Consideramos que esta perspectiva aponta para a criação de uma cultura dos Direitos Humanos na nossa sociedade, que penetre os diferentes âmbitos da vida social e impregne tanto os espaços privados como os públicos. Esta constitui a perspectiva a partir da qual nos situamos.
Como promover processos de educação em Direitos Humanos? Partimos da afirmação de que as estratégias pedagógicas não são um fim em si mesmas. Estão sempre a serviço de finalidades e objetivos específicos que se pretende alcançar. Neste sentido, na perspectiva que assumimos, as estratégias metodológicas a serem utilizadas na educação em Direitos Humanos têm de estar em coerência com a concepção que apresentamos, uma visão contextualizada e histórico-crítica do papel dos Direitos Humanos na nossa sociedade e do sentido da educação neste âmbito: formar sujeitos de direito, empoderar os grupos socialmente vulneráveis e excluídos e resgatar a memória histórica da luta pelos Direitos Humanos na nossa sociedade. É bastante comum que afirmemos que queremos formar sujeitos de direito e colaborar na transformação social e, no entanto, do ponto de vista pedagógico, utilizarmos fundamentalmente estratégias centradas no ensino frontal, isto é, exposições, verbais ou mediáticas, quando muito introduzindo espaços de diálogo com os expositores, quer sejam professores/as ou membros de mesas redondas. Este tipo de estratégia atua fundamentalmente no plano cognitivo, quando muito oferece informações, idéias e conceitos atualizados, mas não leva em consideração as histórias de vida e experiências dos participantes e dificilmente colaboram para a mudança de atitudes, comportamentos e mentalidades. Em geral, no melhor dos casos, propiciam espaços de sensibilização e motivação para as questões de Direitos Humanos, mas seu caráter propriamente formativo é muito frágil. A perspectiva acima assinalada supõe a realização de processos formativos.
A palavra processo é fundamental. Exige uma série de atividades articuladas e desenvolvidas em um determinado período de tempo, através das diferentes áreas curriculares. Neste sentido, no contexto da educação escolar, não pode ser setorizada, transformada em uma disciplina ou ser de responsabilidade de determinadas áreas curriculares, como as ciências sócias ou/e as chamadas atividades e projetos extra-classe. Trata-se de integrar a educação em Direitos Humanos nos projetos políticos pedagógicos das escolas e concebê-la como um eixo transversal que afeta todo o currículo.
No que diz respeito aos temas a serem trabalhados, devem serndefinidos tendo-se presente as características e interesses de cada grupo, de cada escola, de cada contexto mas sempre situando as questões abordadas num contexto social amplo e em relação à problemática e conceitos fundamentais relacionados aos Direitos Humanos. A noção de dignidade humana deve perpassar os diferentes temas abordados e constituir-se num eixo vertebrador de todo o processo desenvolvido. Além disso, é importante mobilizar diferentes dimensões presentes nos processos de ensino-aprendizagem, tais como: ver, saber, celebrar, sistematizar, comprometer-se e socializar. Estas dimensões são concebidas de maneira integrada e interrelacionada. O ver refere-se à análise da realidade, o saber aos conhecimentos específicos relacionados ao tema desenvolvido, o celebrar à apropriação do trabalhado utilizando-se diferentes linguagens, como simulações, dramatizações, músicas, elaboração de vídeos, etc. A sistematização supõe a construção coletiva que sintetiza os aspectos mais significativos assumidos por todo o grupo e o comprometer-se a identificação de atitudes e ações a serem realizadas. A socialização da experiência vivida constitui a etapa final do processo. A utilização de metodologias ativas e participativas, o emprego de diferentes linguagens, a promoção do diálogo entre diversos saberes, são componentes presentes ao longo de todo o processo que deve ter como referência fundamental a realidade social e as experiências dos alunos/as. Especial atenção deve ser dada aos relatos de histórias de vida relacionadas às violações ou à defesa dos Direitos Humanos, apresentadas pelas próprias crianças ou adolescentes, através de entrevistas realizadas com determinadas pessoas indicadas pelo grupo ou através de matérias de jornais e outros meios de comunicação.
Uma estratégia metodológica que nos processos que vimos desenvolvendo é privilegiada são as chamadas oficinas pedagógicas, concebidas como espaços de intercâmbio e construção coletiva de saberes, de análise da realidade, de confrontação de experiências, de criação de vínculos sócio-afetivos e de exercício concreto dos Direitos Humanos. A atividade, participação, socialização da palavra, vivência de situações concretas através de sociodramas, análise de acontecimentos, leitura e discussão de textos, realização de vídeo-debates, trabalho com diferentes expressões da cultura popular, etc, são elementos presentes na dinâmica das oficinas. O desenvolvimento das oficinas se dá, em geral, através dos seguintes momentos básicos: aproximação da realidade/sensibilização, aprofundamento/reflexão, síntese/construção coletiva e fechamento/compromisso. Para cada um desses momentos é necessário prever uma dinâmica adequada, sempre tendo-se presente a experiência de vida dos sujeitos envolvidos no processo educativo, o reconhecimento dos saberes previamente construídos pelos/as alunos/as e o diálogo e confronto com os conhecimentos próprios ao saber escolar referido às diferentes disciplinas e as informações socialmente disponíveis. Trata-se, portanto, de transformar mentalidades, atitudes, comportamentos, dinâmicas organizacionais e práticas cotidianas dos diferentes atores, individuais e coletivos, e das organizações sociais e educativas.
O importante na educação em Direitos Humanos é ter clareza do que se pretende atingir e construir estratégias curriculares e pedagógicas coerentes com a visão que assumamos, privilegiando a atividade e participação dos sujeitos envolvidos no processo. Trata-se de educar em Direitos Humanos, isto é, propiciar experiências em que se vivenciem os Direitos Humanos. Estes são apenas alguns dos desafios a enfrentar para que a educação em Direitos Humanos penetre a cultura escolar e os diferentes sistemas de ensino, assim como na sociedade em geral. O importante é que, ao reconhecê-los, procuremos trabalhá-los no nosso dia a dia, a começar pelos que consideremos prioritários. Através do desenvolvimento deste texto procuramos evidenciar a complexidade e a polissemia da educação em Direitos Humanos na atualidade. Assumimos a perspectiva que afirma que seu horizonte de sentido no nosso contexto é formar sujeitos de direito, empoderar os grupos socialmente mais vulneráveis e resgatar a memória histórica da luta pelos Direitos Humanos. Neste sentido, é insuficiente promover eventos e atividades esporádicas, orientadas fundamentalmente a sensibilizar e motivar para as questões relacionadas com os Direitos Humanos. Torna-se imprescindível integrar a educação em Direitos Humanos nos projetos políticopedagógicos das escolas e comprometer no seu desenvolvimento as diferentes áreas curriculares. É, também, de especial importância desenvolver processos formativos que permitam articular diferentes dimensões – cognitiva, afetiva, artística e sócio-política – fundamentais para a educação em Direitos Humanos, assim como utilizar estratégias pedagógicas ativas, participativas e de construção coletiva que favoreçam educar-nos em Direitos Humanos.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria
Especial dos Direitos Humanos/Ministério de Educação/Ministério de
Justiça/UNESCO, 2006.
CUELLAR, R. (ed) Experiencias de Educación en derechos Humanos en
América Latina. Costa Rica: IIDH-Fundación Ford, 2000.