26 de abr. de 2009

Currículo,Escola e Relações Étnico-Raciais





Nas nossas modernas sociedades, fica reservada à Escola grande parcela do ensino reconhecido socialmente como tal. E sabemos que só há ensino quando há intenção de aprendizagem, e que a aprendizagem, ou a condição dela, é que aparece como conteúdo de inscrição genética no instinto humano. A própria história mostra, no seu percurso, a importância de transmitir os conhecimentos de uma geração a outra, como garantia mesmo da nossa sobrevivência enquanto espécie, e que as sociedades humanas, nos diversos momentos da sua trajetória, criaram formas de garantir essa passagem.
Neste sentido é que o conceito de Currículo, como forma de organização do conhecimento escolar, surge como importante na reflexão sobre o papel social da Escola. Não se trata aqui de percorrer a história do currículo como campo de investigação, principalmente da sociologia da educação, nem de buscar as linhas teóricas que o constituem ou discutir a estrutura do currículo em si. O que nos interessa é refletir sobre as implicações das visões sociais que o currículo oficial produz, e a que relações ele está vinculado em nossa sociedade. De uma maneira geral, o currículo escolar tem se relacionado aos diferentes interesses dos projetos nacionais, tanto no Brasil como em outros países. Um exemplo recente disso é a Reforma de Ensino trazida pela Lei 5692/71, criada sete anos após o regime militar estar no poder. Era um momento de assegurar a soberania nacional, e a idéia de desenvolvimento nacional, vista na época de uma nova perspectiva, tecnicista, informava a reorganização da Legislação Escolar posta em vigor. Tratava-se de ampliar as possibilidades de acesso ao ensino regular obrigatório, que nesse momento passara de quatro para oito anos. Um currículo mínimo nacional, núcleo comum, foi estipulado, e a profissionalização aparecia desde o primeiro grau na forma de sondagem de aptidões ou de iniciação para o trabalho, deixando no então recém-instituído segundo grau a marca definitiva da profissionalização ao nível técnico médio. Na história da educação brasileira, outras reformas curriculares antecederam a essa e hoje, após a Lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a partir da qual se elaborou os Parâmetros Curriculares Nacionais que orientam as escolhas dos conteúdos curriculares nas nossas escolas.
Dessa forma, o currículo não é um elemento neutro e desinteressado na transmissão de conteúdos do conhecimento social. Ele esteve sempre imbricado em relações políticas de poder e de controle social sobre a produção desse conhecimento, e por isso, ao transmitir visões de mundo particulares, reproduz valores que irão participar da formação de identidades individuais e sociais e, portanto, de sujeitos sociais. A escolha dos conteúdos curriculares, tanto dos conteúdos conceituais e temáticos, como os conteúdos de valores morais, passa por essas relações. Fica então para nós, que estamos refletindo sobre a omissão, no currículo escolar, das informações sobre a presença e participação dos negros e índigenas na história brasileira – a ponto de não conseguirmos separar, no plano da cultura, o que é ser negro e indigena do que é ser brasileiro – as seguintes questões: A quem interessou essa omissão? E qual a relação entre essa omissão, consentida pelo currículo e pela escola, e os resultados sobre a vida escolar dos alunos de ascendência africana e de ancestralidade indigena?
Como se constrói a identidade dessas crianças e jovens na experiência escolar? Como fica a sua auto-imagem e auto-estima, quando o espelho oferecido é o da omissão exemplar, da falta de prestígio social e histórico da população negra e indigena?
É preciso olhar mais de perto as experiências escolares que essas crianças e jovens vivenciam. A escola precisa aprender, para propor situações de aprendizagem que considerem a presença fundamental dos negros e indigenas em nossa sociedade, e, com isso, no currículo cotidiano, proporcionar outros encontros identitários, mas, dessa vez, de inclusão, de sucesso e, portanto, de aprendizagens positivas. O currículo vivenciado pelos alunos (as) vai além dos conteúdos escolhidos para serem ministrados pelos professores.
A existência, na experiência escolar, de um “currículo oculto”, ao lado do currículo oficial, está confirmada por vários estudos sobre o tema. O conceito de “currículo oculto” como o conjunto de experiências não explicitadas pelo currículo oficial nos permite ampliar a reflexão sobre o tipo de mensagens cotidianas – traduzidas pelas páginas dos livros escolares, pelo preconceito racial entre colegas e entre professores e alunos – que são levadas ao conjunto dos alunos negros e indigenas. Ele inclui conteúdos não ditos, valores morais explicitados nos olhares e gestos, apreciações e repreensões de condutas, aproximações e repulsas de afetos, legitimações e indiferenças em relação a atitudes, escolhas e preferências. Alguns relatos de trabalhos produzidos nesta linha revelam o nível de exclusão traduzido no plano da violência simbólica a que estes alunos estão submetidos na sua experiência escolar. Nesta medida, uma discussão acerca do preconceito racial e das suas manifestações na sociedade brasileira e, em particular, na escola, precisa ser feita. Ela é necessária porque é preciso ampliar a compreensão do problema, para então se poder refletir sobre o que e por que deve ser escolhido como conteúdo para compor um currículo escolar que privilegie um deslocamento do olhar sobre os negros e indigenas na nossa história e cultura.

CURRÍCULO,ESCOLA E AS QUESTÕES RACIAIS: A LITERATURA EM QUESTÃO.











Currículo, Escola e as questões raciais: A Literatura em questão.



Contar histórias reaproxima espaços, tempos e mentalidades por meio da força estruturadora que a narrativa contém. As experiências humanas foram e são narradas. E ouvir histórias é apropriado a todas as idades e níveis de ensino. As histórias gozam da liberdade de transitar por representações passadas e presentes e de ousar sonhar com futuros. Nelas, os conteúdos de um imaginário social se corporificam, provocando identificações, repulsas e referências, tanto no nível individual como no social. Enfim, as histórias são pautadas por valores sociais que são narrados pelos seus personagens, conflitos, soluções, no tempo e espaço determinados pela estrutura da narrativa. O ser humano precisa de histórias para aprender a ser humano.
As histórias africanas, carregadas da força da oralidade, constituem um vigoroso instrumento para aproximar a imagem mental dos nossos alunos da vida dos povos africanos e dos seus valores. Recuperar os heróis africanos e sua saga, como o caso de Sundiata, alimenta de modo positivo o repertório sobre a vida naquele continente. Os mitos africanos contribuem neste sentido.
Por outro lado, as histórias de brasileiros negros que superaram e ultrapassaram a condição desigual a que foram submetidos, e deixaram um importante legado à nação ou tiveram importância em uma situação particular, são fundamentais na construção de referências positivas para os alunos e, em especial, os alunos negros. José do Patrocínio, Luís Gama, André Rebouças, Machado de Assis, Juliano Moreira, Lima Barreto, Teodoro Sampaio, Carolina de Jesus, são alguns exemplos de políticos, literatos, médicos, engenheiros que compuseram com as suas histórias a nossa história. Quem não conhece “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá...” São os primeiros versos da Canção do Exílio, escritos por Antonio Gonçalves Dias, um dos maiores representantes do romantismo brasileiro e também autor de I-Juca Pirama, uma das obras-prima da nossa poesia. De origem mestiça, foi proibido de desposar Ana Amélia Ferreira do Vale, o grande amor de sua vida, pois a mãe da moça não concordou com o casamento, dada a origem do poeta.
E Machado de Assis? Autor obrigatório nas leituras escolares, talvez o maior romancista brasileiro de todos ostempos, ele era filho de um operário mulato e de uma portuguesa nascida nos Açores. Neto de escravos perdeu ainda criança sua mãe e sua irmã, vítimas de doenças que assolavam na época a cidade do Rio de Janeiro. Sobre sua infância e o início da adolescência, pouco se sabe. Helena, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, O Alienista, O Espelho, Missa do Galo são alguns exemplos dos romances e contos do autor, que também escreveu poemas, crônicas sobre o cotidiano, peças de teatro, críticas literárias e teatrais. O advogado e poeta Luis Gama teve uma trajetória de vida ímpar. Filho de africana liberta da Costa da Mina e de fidalgo português nasceu livre na Bahia, em 1830. Sua mãe, Luiza Mahin, rebelde e livre, foi acusada de envolvimento em ações revolucionárias e, então, foi exilada para o Rio de Janeiro ou talvez para o Oeste Africano. Seu pai empobreceu e o vendeu como escravo, três anos após o desaparecimento de sua mãe. Luis Gama tinha então dez anos. Aprendeu a ler na adolescência e logo passou a trabalhar como tipógrafo, para depois tornar-se advogado e um dos maiores líderes abolicionistas. A sua importância foi tal que seu enterro, em 1882, paralisou a cidade de São Paulo e contou com o acompanhamento de cerca de três mil pessoas, entre negros pobres, fazendeiros, políticos, advogados, e até o Conde de Três Rios, Vice-Presidente da Província em exercício.
A literatura brasileira está repleta de escritores negros e mestiços que reconhecidamente marcaram escolas literárias, como seus representantes ou precursores, e precisa ser revisitada nesta perspectiva. Uma outra forma de entrar em contato com esses escritores, dependendo do nível ou série de ensino, é por meio do estudo de biografias. A biografia é um gênero textual que, adequadamente estudado, amplia o universo de informações e permite o estabelecimento de relações, quando se contextualizam o período e as situações que ali são mencionadas. O estudo da influência das línguas africanas no português brasileiro pode ser um outro meio de aprender sobre essa presença na nossa língua, que passa despercebida, por estar impregnada no seu uso cotidiano. Darcy Ribeiro comentou que as línguas africanas amoleceram o português. Acarajé, angu, agogô, banda, batuque, bamba, banguela, banzo, carinho, cafuné, caçula, cachimbo, camundongo, calombo, canga, cachaça, caxinguelê, chuchu, caxumba, calundu, cochilo, dengo, dengoso, dendê, fubá, inhame, Ioiô, Iaiá, jiló, jongo, moleque, miçanga, molambo, marimbondo, marimba, macambúzio, maxixe, mucama, quiabo, quitanda, quitute, quilombo, quibebe, tanga, vatapá, xingar, zumbi - são exemplos de algumas das palavras de origem africana na língua portuguesa do Brasil. Algumas sugestões de literatura infanto-juvenil:

ALGUMAS SUGESTÕES DE LITERATURAS


1 - PINSKY, Mirna. Nó na garganta. São Paulo: Atual, 1991 (série conte outra vez)
2 - SANTOS, Joel Rufino. Dudu Calunga. São Paulo: Ática, 1986.
- Zumbi. São Paulo: Ática, 1985. (Col. Biografia)
- Gosto de África – histórias de lá e daqui. São Paulo: Global, 2001.
3 - COOKE, Trish. Tanto, tanto. São Paulo: Ática, s.d.
4 - ZIRALDO. O menino marrom. São Paulo: Melhoramentos, 2004 30ª edição.
5 - MACHADO, Ana Maria.
- Menina bonita do Laço de Fita. São Paulo: Editora Ática, 1997.
- Do outro lado tem segredos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d.
6 - LESTER, Julius e CEPEDA, Joe. Que Mundo Maravilhoso. São Paulo: BRINQUE-BOOK, 2000.
7 - DIOUF, Sylviane S. As tranças de Bintou. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.
8 - PRANDI, Reginaldo.
- Os Príncipes do Destino. São Paulo, Cosac e Naify, 2001.
- Ifá, o Adivinho. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
- Xangô, o Trovão.
9 - GODOY, Célia. Ana e Ana. São Paulo: DCL, 2003.
10 - LIMA, Heloisa Pires. Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998.
UNIDADE 2 - Currículo, Escola e Relações Étnico-Raciais
Aula 2.07 - Histórias, Leituras, Literatura
11 - BARBOSA, Rogério Andrade;
- Histórias Africanas para Contar e Recontar. São Paulo: Editora do Brasil, 2001.
- O Filho do Vento. São Paulo: DCL, 2001.
- Como as Histórias se Espalharam Pelo Mundo. São Paulo: DCL, 2002.
12 - EISNER, Will. Sundiata – O Leão de Mali. São Paulo: Companhia das Letrinhas, sd
13 - LAMBLIN, Christian.
- Samira não quer ir à escola. São Paulo: Editora Ática, 2003.
- Os pais de Samira se separaram. São Paulo: Editora Ática, 2002













11 de abr. de 2009

A ESCOLA E SUA FUNÇÃO SOCIAL





A ESCOLA E SUA FUNÇÃO SOCIAL


Caro Alunos (as)
Antes de refletir sobre o Currículo e as suas implicações na constituição de identidades individuais e sociais, gostaríamos de refletir sobre a Escola, sua função social e as condições de acesso e permanência da população negra e mestiça em relação ao sistema de ensino. A Escola na nossa sociedade é a segunda instituição responsável pelas relações de sociabilidade de crianças e jovens, depois, é claro, da família. Nela o aprendizado sobre as regras e valores sociais é experimentado sob a ótica do grupo. Não se trata de cada um com seus pais, e sim com seus pares, mediados pela figura do professor. Entrando na escola cada vez mais jovem, a criança aprende logo cedo a dividir a atenção e os cuidados do adulto com os outros no grupo. Esta é uma grande experiência fundante na sociabilidade escolar e na construção de identidades. As experiências iniciais com a escola precisam ser levadas a sério, pois podem definir a base de uma trajetória escolar mais tranqüila ou mais atribulada. Sentir-se acolhido, incluído e integrado facilita a construção de uma auto-estima positiva, elemento fundamental para o sucesso escolar.
Desde a sua origem, a função social da Escola como transmissora da instrução pública foi motivo de estudos e de reflexões, nos diversos momentos históricos por que passaram as modernas sociedades ocidentais, sendo abordada por diferentes tendências teóricas, cada uma das quais construiu seu ideário específico a respeito dela. De fato, foi só no final do século XVIII, por volta de 1790, que o ensino passou a ser motivo de preocupações constantes por parte das Assembléias Revolucionárias na França, e a constituição do ano III anunciou o princípio de “uma instrução pública comum a todos os cidadãos, gratuita, no que se refere à parte indispensável para todos os homens” (Soboul, A: 1981:50). Sem dúvida, o caráter universalizante e homogeneizador do ensino na Escola, como responsável pela instrução pública, estava vinculado às enormes transformações sociais, políticas,econômicas e culturais por que passava o mundo Ocidental naquele momento. Esta Escola surge no bojo da própria definição do papel do moderno Estado nacional e de seus serviços, e é ela a precursora da Escola laica e da obrigatoriedade da universalização do ensino, princípios quase intocáveis até os nossos dias. A Escola de que falamos hoje é, portanto, herdeira das intenções contidas na Constituição francesa do ano de 1792. Os princípios gerais do pensamento liberal, isto é, o individualismo, a propriedade, a igualdade e a liberdade, estavam no fundamento do surgimento da Escola como responsável por uma instrução pública. Essa Escola deveria garantir o respeito aos talentos e aptidões individuais e seu desenvolvimento ao máximo da capacidade de cada um, bem como a liberdade individual dessa escolha, no sentido de melhor aproveitar as potencialidades individuais, em respeito à personalidade de cada um. A idéia de igualdade do pensamento liberal estava vinculada à igualdade perante a lei, dela derivando a igualdade de oportunidades de acesso à instrução pública, como igualdade de direitos, independente do pertencimento a qualquer classe social. Esses princípios apontam para a democracia como forma ideal de governo, capaz de assegurar a todos os indivíduos o direito à participação na vida social e política da nação. Eles não encontraram,evidentemente, um consenso total quanto aos significados de seus postulados teóricos no pensamento liberal (Quirino dos Santos, C e Montes, M.L: 1987), mas o que nos interessa aqui é ressaltar o contorno que eles davam ao papel social da Escola que surgia na época, e que foi, ao longo da sua história, compondo o imaginário da função social da instituição escolar até os nossos dias. Acreditava-se num desenvolvimento humano independente da família, das instituições religiosas e das classes sociais, que aconteceria pela revelação dos dotes inatos, aptidões e vocações de cada um. Este desenvolvimento seria mediado pela Escola que, cumprindo esse papel, garantiria ou, pelo menos, contribuiria de modo inestimável para a realização individual, condição do progresso geral.
Deste modo, o final do século XVIII, com todas as suas transformações, pôs fim ao privilégio do acesso ao ensino, abrindo a perspectiva do direito à Educação como condição de progresso social, regulamentando-o na forma da Lei, e estabelecendo como função do Estado a sua garantia. Um longo percurso de transformações históricas e de construções teóricas a respeito delas aconteceu desde então. A ebulição de idéias que caracteriza o início do século vinte trouxe para a Escola os filósofos, os epistemólogos, os sociólogos, os lingüistas, os herdeiros da psicanálise, todos contribuindo, à luz da sua disciplina, para desvendar a Escola e sua função social.

EDUCAÇÃO NA PRIMEIRA REPUBLICA: Alguns apontamentos.





EDUCAÇÃO NA PRIMEIRA REPÚBLICA:Alguns apontamentos.

Durante todo o período da Primeira República, parece terem sido os positivistas quem ‘pensaram’ a Educação e efetivaram as reformas educacionais, em nível nacional. Benjamin Constant, Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, entre 1890 e 1891, realiza a reforma do ensino primário e secundário. Em seguida, o gaúcho Rivadávia Corrêa, Ministro da Justiça e Negócios Interiores realiza, durante sua gestão (1910-1914), segundo Cunha (1980) “uma das mais ousadas e heterodoxas reformas da educação escolar no país” (p.139). Depois destas, aconteceram a reforma de Carlos Maximiliano (1915) e a reforma de ensino de Rocha Vaz em 1925.
Ao lado disso, o ideário liberal que defendia o mesmo regime, no processo de conciliação que dominava a realidade política e econômica da Republica, em geral, foi quem preparou a organização das leis educacionais nos estados, cuja representação mais forte, no inicio da República, foi a de Francisco Campos, entre 1890 e 1896, em São Paulo.
As demais, a partir dos anos 20, passam a hegemonizar os projetos de organização da educação a ser construída e passam a referendar, inevitavelmente, os estudos localizados sobre a educação. Cabe lembrar que na Constituição de 1888: “Cabia à União legislar sobre o ensino superior na Capital da República, cabendo-lhe, não privativamente, criar instituições de ensino secundário nos estados e promover a instrução no Distrito Federal: Aos Estados se permitia organizar os sistemas escolares, complementares; [...]”. Embora, seja sabido o quanto essa situação, de certa forma, se tenha mantido próxima das condições que se operavam durante o Império: autonomia sem condições operacionais e materiais pra tal.
Aliás, uma situação que quase sempre aparece desprovida de um sentido verdadeiro em nossa história, cabendo ressaltar a observação de Konder (1980) de que, quando as 13 colônias se tornaram independentes na América do Norte, ocorreu a alternativa de confederação ou federação, e o debate tomou conta de todo o século XIX. Para o autor, no Brasil, ao contrário, a federação surgiu com as idéias de descentralização, o que é uma contradição nos termos, uma vez que Federatio, em latim, significa união, conjunção. Aqui, a federação significou uma reação contra o centralismo monárquico que era, sobretudo, patente no campo administrativo (p.4).
Sendo assim, no tratamento sobre a Educação na Primeira República é quase inevitável que os estudos façam recorrência aos materiais e testemunhos da História da Educação, cujas fontes escritas: relatórios, leis educacionais etc, nos levam a uma aproximação entre a análise macro-estrutural e as suas sínteses explicativas, e, de certa forma, aos processos individuais expressos nas reformas de Sampaio Dória (1920), em São Paulo; de Lourenço Filho, em 1923, no Ceará; de Anísio Teixeira, em 1925, na Bahia; de Francisco Campos, em 1927, em Minas Gerais; de Fernando de Azevedo, em 1929, no Distrito Federal; de Carneiro Leão, em 1929, em Pernambuco e a de Lourenço Filho, em São Paulo, ocorrida em 1930.
Dentro dessa perspectiva, o enfoque macro da educação, muitas vezes, é tomado como uma categoria normativa que se situa quase no mesmo plano tanto da política, das idéias, como da realidade concreta. No entanto, cabe observar que outras tantas idéias também circulavam e estabeleciam o conflito com o regime, porém, com pouca visibilidade, quando se compara com aquelas que contam com o apoio da institucionalização oficial: anarquistas; socialistas etc, sem se falar de uma maioria que era desprovida sequer dessas possibilidades.
Não é incomum, portanto, dividir o estudo da Educação do período em questão, em dois momentos. Um primeiro momento, correspondente ao inicio da Primeira República, quando os ideais estabelecidos para o novo regime e a autonomia constitucional adquirida
pelas unidades federadas não aconteceram de fato. Por exemplo, é bastante reiterativa a recorrência ao pensamento de Fernando de Azevedo (1964) quando considera que a República: “[...] do ponto de vista cultural e pedagógico, não vingou: foi uma revolução que abortou e que, contentando-se com a mudança do regime não teve o pensamento ou a decisão de realizar uma renovação intelectual das elites culturais e políticas, necessárias às novas instituições democráticas” (1953, p. 134). E, em seguida, depois de seu Relatório em 1926, da efetivação do regime, em decorrência de momento histórico quando vão acontecer as reformas educacionais estaduais, principalmente a partir dos anos 20.
Diante do exposto, de uma maneira simplificada, podemos dizer que o estudo sobre a História da Educação na Primeira Republica:
a) Do ponto de vista da periodização, adota os marcos temporais, correspondendo ao período convencional, entre 1889 a 1930, havendo cortes, principalmente a partir de 1920. Dentro de um processo social, político e econômico, em sua composição hegemônica liberal e em movimento de disputa pelas condições urbano-industriais, dentro do mesmo regime;
b) Os temais mais recorrentes dizem respeito à descentralização da educação, à legislação educacional e às idéias educacionais, seguidos do estudo da legislação, no âmbito estadual, e aos estudos sobre a institucionalização da escola;
c) Do ponto de vista da origem das fontes consultadas, embora tenhamos que ser cautelosos, dado o limite de nosso levantamento, parece que o recurso mais utilizado pelos textos produzidos entre 1970 e 1980 tem sido a Historia da Historia da Educação, quer dizer, a pesquisa e a análise focando fontes escritas, secundárias publicadas ── com uma importante transição, nos anos seguintes, para o uso de fontes primárias, particularmente para o estudo do local, do regional, bem como para o alargamento da concepção e o uso das fontes escritas (documentos) e imagéticas (fotografias).
A título de uma primeira radiografia, situaremos, a) pelo menos, dois manuais de História da Educação; b) os estudos intermediários que tratam da organização, funcionamento e idéias que dão origem e sentido à educação no período; c) depois, estudos que focam a descentralização do ensino, principalmente nos estados; d) em seguida um dos estudos que parece ser uma matriz das novas formas de abordar a história da educação; e) e, finalmente, mapearemos estudos mais recentes produzidos pelos cursos de pós-graduação a quem imputam, na área, matrizes teóricas distintas, provenientes da USP e da UNICAMP; f) para, finalmente, proceder a uma breve situação dos trabalhos dos grupos de pesquisa do HISTEDBR, por conta da finalidade que temos que alcançar – em direção ao seu aniversário de 20 anos.
A modo de síntese, pretendemos agrupar esses estudos, segundo uma primeira observação, nos seguintes marcos conceituais:
1 - Primeiro, estudos que dão especial atenção para a determinação do todo sobre as partes – de modo recíproco ou dialético – para as estruturas econômicas e as estruturas de poder correspondentes/predominantes e para a constituição político-administrativa de um Estado “moderno”, que conserva a sua origem cultural oligárquica e apresenta uma política educacional ─ sob a capa de ideologias e de ideais ‘novo’ que, na realidade, não correspondem com a realidade concreta ou pensada;
2 - Segundo, os estudos que dão atenção para a organização da educação no período em foco, para a sua constituição e para o entrelaço entre as partes e o todo ─ dos ideais, dos sistemas educativos e/ou dos níveis educacionais ─ e para o seu estado na realidade política nacional em curso, e vice versa ;
3 - Terceiro, a educação e a sua ação sobre os sujeitos ou a relação entre os chamados sujeitos e a estruturas ativas da educação, a constituição da escola e de seus sujeitos, representação, consciência e subjetividade em sua relação, estabelecendo (ou não) uma inter-relação entre as partes e o todo.

NEGROS E POBRES NA ESCOLA PÚBLICA NO IMPÉRIO BRASILEIRO



NEGROS E POBRES NA ESCOLA PÚBLICA NO IMPÉRIO BRASILEIRO

RESUMO

O artigo apresenta dados finais de pesquisa sobre a escolarização de crianças pobres, negras e mestiças no Brasil, durante a vigência da Monarquia constitucional (1824-1889). Para seu desenvolvimento, foram investigados diferentes documentos da instrução pública; a principal tese é demonstrar o caráter popular da escola do Império e discutir que o seu fracasso na função de instruir e civilizar pobres, negros e mestiços pode estar exatamente relacionada à desqualificação da condição de educabilidade da clientela à qual se destinava a escola pública do século XIX. Destaca ainda a importância da temática para ampliação dos debates sobre a história da escola no Brasil.

Palavras-chave: história da educação; educação imperial; escola pública; classe social; etnia


Na memória da escola pública, pelo menos nos primeiros 60 anos do século XX, era tida em alta conta pela sociedade. Em geral, os grupos escolares, os ginásios, cursos de científico e Escola Normal públicos eram estabelecimentos de ensino considerados de excelência, cujas vagas eram disputadas por exames de seleção, e freqüentados por pessoas oriundas das classes média e alta. Dessa maneira, era restrito o número de pessoas das classes pobres que tinham acesso e/ou permaneciam nas escolas púbicas, pelos mais diferentes motivos, mas principalmente pela sua inserção precoce no mercado de trabalho. Também a presença de negros na escola era bastante limitada, não somente por pertencerem à camada mais pobre da população, mas também em virtude da conhecida questão das diferenças de oportunidades escolares entre brancos, pardos e negros (Hasenbalg, 1979; Gonçalves, 2000).

Contudo, na origem da implementação da escola pública elementar para todo cidadão brasileiro a partir da Constituição de 1824, na vigência da monarquia imperial, houve um crescente apelo para a necessidade de instruir e civilizar o povo. Como uma invenção imperial, em grande parte dos discursos a aprendizagem da leitura, da escrita, das contas, bem como a freqüência à escola se apresentava como fator condicional de edificação de uma nova sociedade. Mas ressalte-se o impedimento legal de freqüência dos escravos às aulas públicas em várias províncias do Império. Esse fator tem sido interpretado também como impedimento da freqüência dos negros, gerando uma série de equívocos na história da escola.

Portanto, observa-se na historiografia mais geral e na historiografia da educação em particular a permanência de um registro que invariavelmente associa os negros aos escravos e vice-versa, inclusive com ausência de ressalvas importantes, como o aumento significativo da população negra livre e a crescente diminuição da população escrava a partir de metade do século XIX (Mattos, 2006). Por isso, a sinonímia entre negros e escravos precisa ser problematizada no sentido de ampliarmos os estudos sobre a história do negro no Brasil e aqui avançarmos especialmente na investigação sobre os negros na história da educação e da própria história da educação brasileira.

Ao tomar negros por escravos, estudiosos acabam por limitar a discussão sobre o lugar da escola pública na organização das nações modernas e dos Estados constitucionais. Apenas para citar dois exemplos e a permanência do equívoco: em artigo de 1994, relativo à instrução de escravos e libertos, Sarita M. Affonso Moysés afirma que a Constituição de 1824 "proibia o acesso à Educação aos pretos, negros e crioulos" (Moysés, 1994, p. 200); em outro livro, em capítulo sobre a escravidão, Mario Maestri reitera: "As escolas urbanas estavam vedadas ao ingresso de negros livres, que dirá aos cativos" (Maestri, 2004, p. 205). Com todo respeito por esses pesquisadores, é preciso refletir, como veremos, sobre os motivos da sinonímia entre negros e escravos e sua longa duração histórica.1

Quanto ao acesso dos escravos à aprendizagem da leitura e da escrita, importantes pesquisas foram realizadas indicando tal prática desde o século XVIII, ainda que não necessariamente realizada numa escola. Entre outros, esse é o caso, por exemplo, dos estudos de Luiz Carlos Villalta (1999) e Eduardo França Paiva (2003), além de estudos mais recentes, como o de Christianni Cardoso Moraes (2007). Em minha própria pesquisa foi possível encontrar listas de freqüência de alunos em aulas particulares com registros de meninos escravos, como a do professor José Carlos Ferreira, de Cachoeira do Campo (província de Minas Gerais), que na sua lista de 1832 registrou Victor Máximo, 5 anos, escravo de Manoel Murta, e Antonio Manuel da Guerra, 7 anos, escravo de Manoel Guerra (IP 3/2, caixa 01, pacotilha 33).

Sobre a escolarização de negros e mestiços ao longo do século XIX, poucos estudos foram realizados de maneira que dessem visibilidade a uma outra possibilidade de vida dos afrodescendentes que não associada ao mundo da escravidão ou da marginalidade. Ainda assim, observa-se em geral certo espanto dos historiadores quanto ao fato de haver negros que soubessem ler, escrever e/ou contar. Contudo, tal procedimento precisa ser mais bem problematizado, ou melhor, é preciso perguntar sobre o lugar da leitura e do letramento na sociedade imperial brasileira, levando-se em consideração três constatações muito distintas: a presença reiterada do discurso da missão civilizadora da escola por parte das elites governamentais; as precárias condições de funcionamento das escolas públicas de maneira geral; e o alto índice de analfabetismo em fins do século XIX. De acordo com Lilia Schwarcz (1998), o recenseamento de 1872 indicou que 84% da população brasileira era de analfabetos; portanto, é possível especular que também muitos brancos, inclusive abastados, não sabiam ler.

Sobre a instrução dos pobres, temos que, na historiografia, criança pobre é em geral objeto de estudo de quem investiga instituições destinadas especialmente a elas, tais como orfanatos, asilos, escolas de aprendizagem de ofícios. Assim, Mary del Priore, na introdução do livro História das crianças no Brasil, de 1999, afirma: "No século XIX, a alternativa para os filhos dos pobres não seria a educação, mas a sua transformação em cidadãos úteis e produtivos na lavoura, enquanto os filhos de uma pequena elite eram ensinados por professores particulares" (Priore, 1999, p. 10). Contudo, já por essa época havia pesquisas que demonstraram a presença de pobres na escola, como é o caso da dissertação de Alessandra Frota Martinez, Educar e instruir: a instrução popular na corte imperial (1854-1889), de 1997. Apesar de outros estudos nos anos seguintes identificarem a presença de meninos pobres nas escolas públicas, o tema é pouco problematizado na perspectiva de refletir sobre o significado dessa clientela na origem da escola pública brasileira.

Feitas tais considerações, este texto tem como objetivo demonstrar que a escola pública elementar do século XIX foi essencialmente destinada a crianças pobres, negras e mestiças. Como veremos adiante, em geral, crianças das famílias abastadas brancas buscavam meios próprios de educação de seus filhos, por sua vez o discurso civilizador destinava-se àqueles que na percepção das elites careciam de civilização. Diferentemente de outras instituições, a escola teve característica fundamentalmente inclusiva no objetivo de instruir e civilizar na perspectiva de produzir coesão social (Veiga, 2005), ainda que se tenha instalado em condições muito precárias e, portanto, não se tenha constituído como uma alternativa social.

Outra questão volta-se para refletirmos que a experiência da presença de filhos da população negra e mestiça nas escolas brasileiras não é decorrente da abolição da escravidão e instalação da República; é parte da história do Brasil desde fins do século XVIII e especialmente aqui desde a Independência, da instalação da monarquia constitucional e da institucionalização da escola pública para todo cidadão brasileiro. Dessa maneira, é possível também verificar que a experiência da vivência da discriminação étnica e racial nas salas de aulas possui uma significativa longevidade histórica, não é recente e vem-se acumulando há quase duzentos anos.

Assim é que podemos afirmar que a propagação da concepção da importância da escola da organização da sociedade é uma invenção imperial, associada à difusão da Constituição. Portanto, incorporar o período imperial nas análises relativas à presença de pobres, negros e mestiços na história da escola pública brasileira pode levar-nos a problematizar melhor o fracasso da escola como vetor de civilização e homogeneização cultural da população brasileira durante a Monarquia e sua recriação como escola de alunos brancos de "boa procedência" nos anos iniciais da República. Como pudemos constatar em significativa documentação, muitas foram as causas do fracasso da escola imperial, com ênfase para os limites das condições de vida de sua clientela.

Este artigo refere-se à pesquisa finalizada recentemente sobre Minas Gerais, com recorte temporal para o período de vigência da monarquia constitucional. Está desdobrado em três itens: o primeiro discute a implementação da obrigatoriedade escolar; em seguida demonstra a presença das crianças pobres na escola; e, finalmente, apresenta o procedimento de investigação para a identificação do não-impedimento de freqüência das crianças negras e mestiças na escola pública.

A escola pública como vetor de civilização

A Constituição Imperial (de 25 de março de 1824), no artigo 179, item 30, outorga como garantia da inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, entre outros dispositivos, a garantia da instrução primária gratuita a todos os cidadãos. Bernardo Pereira de Vasconcelos, então deputado mineiro na Assembléia Geral do Império (1795-1850), confirmava em relato de 1828 que

Legislando sobre a instrução publica, o principal cuidado da Assembléa Geral foi sua vulgarisação o quanto fosse possível: he deste modo, que se poderão nivelar pouco mais pouco menos as faculdades moraes dos Brazileiros, e que se aniquillara essa dependencia real, que as luzes de uma classe exerciam sob a cega ignorância da totalidade: dependencia esta que tanto contribuiu para a consolidação do Septro de ferro, que por trez seculos nos oprimio. (Carta aos Senhores Eleitores da Província de Minas Geraes, Revista do Arquivo Público Mineiro, 1904, p. 236)2

Quais eram os destinatários de discursos como esse? Quais brasileiros deveriam ter faculdades morais niveladas e em relação a que outro grupo? Ao longo de todo o século XIX, apelos como elevar a situação moral dos brasileiros apresentaram-se como fator importante de elaboração da nova condição de cidadãos de direitos e deveres. Logo nos anos iniciais do Brasil independente houve grande ênfase na negação do regime absolutista e no uso, por parte das elites, de associações do tipo ignorância e dependência política (despotismo/"escravidão colonial") e principalmente entre instrução e liberdade/civilização. Essa concepção havia sido inclusive motivo de uma atividade escolar em uma escola mineira, como é o caso do exercício de Antonio Martins da Silva, aluno da aula pública de Forquim, entre vários outros similares. Na escrita enviada ao delegado literário (os professores assim procediam para demonstrar o desempenho de seus alunos), o menino escreveu: "Amar a liberdade aborrecer a escravidão procurar o bem público e evitar o mal da Pátria he o dever do cidadão honrado. Forquim 14 maio de 1837" (PP 1/42, caixa 08, pacotilha 09).

Pelo ato adicional de 12 de agosto de 1834, a legislação da instrução elementar passou a ser de competência das Assembléias Provinciais. Dessa maneira, em Minas Gerais, foi por meio da lei n. 13, de 7 de abril de 1835, e do Regulamento 13, de 25 de maio de 1835, que se estabeleceu a normalização da instrução para toda a província, incluindo a obrigatoriedade da freqüência escolar, marcando o início de um significativo conjunto de legislações para regulamentar a educação durante todo o Império: quais seriam as pessoas a que se destinava a escola pública, obrigatória e gratuita do século XIX? Pelo quadro a seguir, chama-nos a atenção a composição étnica da população brasileira, com predominância majoritária de negros e mestiços. Ressalta-se ainda que, de acordo com a historiadora Hebe Mattos, por época da abolição da escravidão, compunham a população cativa 5% da população negra do país (Mattos, 2006, p. 111).
As crianças das classes razoavelmente abastadas não vão à escola pública por que seus pais têm, mais ou menos, o preconceito de cor ou porque temem e, com razão, pela moralidade de seus filhos, em contato com essa multidão de garotos cujos pais os enviam à escola apenas para se verem longe deles algumas horas. Deste modo, estas crianças aprendem melhor e mais depressa do que aqueles que freqüentam a escola pública. (Almeida, 1989, p. 90)

Contudo, foram muitas as tensões para a implantação da obrigatoriedade escolar. Os conflitos podem ser pensados num quadro de embate de representações em que esteve presente um imaginário de sociedade constituída de população rude a ser educada. O entendimento do "outro" como objeto de civilização foi enfaticamente difundido na época, acentuando-se para o Brasil as tensões presentes nas relações interétnicas. Por exemplo, o conhecido político José Bonifácio (1763-1838) registrou em 1813 seu entendimento da população brasileira como um problema para a formação de uma nação, pois "[...] amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. em um corpo sólido político" (Andrada e Silva, 1998, p. 170).

A escolarização do povo apresentou-se como uma condição de homogeneização cultural; a institucionalização das aulas/cadeiras de instrução pública elementar não teve como alvo os filhos da elite branca. Em relatório de 1862, o vice-presidente da província mineira, coronel Joaquim Camillo Teixeira da Motta, relembrava a intenção da difusão da instrução pública disposta em lei: "E entretanto seu começo foi augurado pelas mais felizes ideas, e pelos resultados que desde logo estabelecerão sensível diferença entre a nossa mais desfavorecida classe, e as de outras Províncias do Império" (Relatório, 1862, p. 18).

Na pesquisa desenvolvida foi possível detectar claramente que a clientela escolar denominada como desfavorecida pertencia à classe pobre de diferentes origens étnicas - brancos, negros e mestiços. Destaca-se que, em geral, houve certa homogeneização no tratamento desse grupo - pobre, negros e mestiços - como inferior, a partir de sua representação como grupo não civilizado. Como analisa Norbert Elias, a produção de um grupo social como inferior implica principalmente associar as características que o tornam assim a uma situação de anomia (Elias & Scotson, 2000). Dessa forma, a escola passaria a ter uma função altamente relevante na sociedade.

Para o cumprimento da lei da obrigatoriedade da freqüência escolar, foram instituídos vários dispositivos, com significativa repercussão na população, isso porque diferentes motivos contribuíram para a situação geral de infreqüência dos alunos e evasão da escola, e, mesmo com a presença de regulamentações punitivas, o problema esteve longe de ser resolvido.

Um expressivo conjunto de leis prescrevia a fiscalização das escolas, principalmente das aulas públicas, seja o trabalho dos professores, seja o aproveitamento dos alunos, gerando importante documentação da instrução pública: relatórios dos visitadores, delegados literários e/ou inspetores de ensino; ofícios e correspondências diversas entre pais (ou responsáveis), professores e governo; mapas de freqüência de alunos (Veiga, 2005). É importante ressaltar que a obrigatoriedade da freqüência era para os meninos. Apesar de incentivos para a abertura de escolas de meninas, a obrigatoriedade de sua freqüência somente se deu em 1882, em virtude mesmo dos costumes de época em relação à circulação das meninas.

O regulamento da lei de 1835 normalizou uma multa a ser paga pelos pais que não fizessem seus filhos freqüentarem a aula pública, gerando as listagens de "pais omissos". De acordo com a legislação, os juízes de paz deveriam encaminhar à presidência da província a relação dos meninos que atendiam aos quesitos de obrigatoriedade de freqüência escolar (idade e condição de ser livre); tais dados eram extraídos dos mapas de população. Caso os pais não enviassem à escola os filhos aptos a freqüentá-la, eram então considerados omissos.

Assim foi o procedimento do juiz de paz suplente de Arassuaí, Valensianno Luis da Cunha. Em 30 de outubro de 1839, ele encaminhou ao presidente Bernardo Jacintho da Veiga uma "Relação nominal dos pais de famílias que não têm cumprido com o artigo 12 da lei mineira nº 13 em entregar seus filhos a Instrução Primária pela falta de intimações como prescreve o artigo" (Seção Provincial, códice 235). Na relação consta o nome de 84 "pais omissos", com o acréscimo das observações de que, entre 101 crianças em condições de freqüentar a escola, apenas 17 o faziam e de que havia muito mais crianças aptas a ir à escola, sendo necessário melhorar os censos.

Além da intenção de "retirar o povo da ignorância", esses procedimentos devem-se a um conjunto de fatores relacionados à própria estruturação do ensino público imperial. Por exemplo: para a existência de uma cadeira de instrução pública provida por um professor, era necessária a freqüência mínima de alunos (variando entre 20 e 25), caso contrário a cadeira era suspensa ou fechada. Como documento de comprovação de freqüência à sua aula, os professores deveriam elaborar mapas de freqüência trimestrais, comprovando tanto a existência de alunos como o cumprimento de seu próprio trabalho, pois esses mapas eram exigidos para o recebimento dos salários.

Contudo, fortes tensões apresentaram-se para a eficácia do cumprimento das normas. Em um ofício de 28 de março de 1836, o delegado literário expunha os motivos do descumprimento da lei por parte de uma mãe de família, Marta Ribeiro da Costa, de cor parda, empregada numa fazenda de Contendas:

Mora a 6 léguas distante do Arraial, sede da aula, tem a seu cargo 2 filhas; sem outro meio de subsistência, além da lavoura, se emprega esta pobre família composta de 4 indivíduos, sendo o mais útil o filho, apesar da tenra idade. 2. Faltam todos os meios para manter aquele filho em qualquer aplicação. 3. Das razões alegadas, a suplicante pelo seu desvalimento não acha no Arraial quem o admita em casa e zele por sua pueris [...] de que é suscetível a natureza humana. Entregue o impúbere a descrição do tempo [...] as paixões, muito mais depressa se entregaria a corrupção e imoralidade que as lições ditadas pelo professor que de nada conhece fora da aula. 4. A suplicante se desencarregou da escola para aquele filho, "por causa de um só filho vem perder todos" (não tem como pagar a multa)... São estas as tristes circunstâncias da desgraçada. (Seção Provincial, IP 1/42, caixa 05, pacotilha 60)

Essas situações de constrangimento às quais as famílias estiveram expostas associam-se também às práticas de se elaborarem as listas de "pais omissos" e sua afixação em locais públicos. Entretanto, tal posição de "ilegalidade" não foi acompanhada da criação de condições para as crianças terem freqüência regular na escola e, principalmente, aprenderem a aquilo que se esperava delas: o saber elementar escolarizado. Os motivos foram de toda ordem e de maneira combinada: pobreza da população, trabalho infantil, dispersão populacional e das escolas, inconstância na administração política, limitações pedagógicas, mas principalmente em razão da presença de uma dissonância entre a expectativa de civilizar e o imaginário de uma população concebida como grupo inferior, de "difícil educação".

Crianças pobres na escola pública

Como dito, apesar de os estudos históricos sobre crianças pobres estarem em geral relacionados a instituições de recolhimento, como roda de expostos, asilos e abrigos, para os estudos do século XIX podemos acrescentar a escola pública como um dos espaços de presença das crianças pobres e particularmente de produção da identificação "aluno pobre". Tal denominação pode ser detectada em diferentes documentos. Na legislação têm-se as seguintes referências: criação da caixa escolar, subsídio financeiro para professores particulares que ensinassem meninos pobres, previsão de verbas para compra de material para os alunos pobres. Nas correspondências, ofícios e mapas de freqüência de alunos, além dos relatórios de delegados ou inspetores de ensino, a alusão à pobreza é uma constante, principalmente pelos seguintes motivos: justificar a impossibilidade de cobrar multa, a falta de freqüência dos alunos e o baixo desempenho escolar.

Em contrapartida, foi possível notar na documentação que, em geral, as famílias mais abastadas não enviavam seus filhos aos mestres públicos, preferindo a aprendizagem no domicílio ou em aulas particulares. Em relatório de 1851, o vice-diretor geral da Instrução, Antonio José Ribeiro Bhering, assim afirma:

[...] o número das aulas particulares é considerável. Sua freqüência é pelo menos igual a das escolas públicas. Os pais dão preferência ao ensino particular, por que nem todos os professores, ou melhor, grande número de professores, não dá as preciosas garantias de saber, honradez e moralidade, requisitos que os pais ou educandos consultam quando tratam da educação de seus filhos. (Relatório, 1852a, p. 4)

Em relatório de 1876, apresentado pelo inspetor geral da Instrução Leônidas Lessa, registra-se que na província havia uma população de 1.444.000 pessoas, com 205.714 crianças em condições de freqüentar a escola, mas apenas 23.979 freqüentavam. Desse número foi descontado um terço de crianças que recebiam instrução doméstica. Assim, o inspetor conclui: de cada 60 crianças livres, apenas uma freqüenta a aula pública; assim, um considerável número fica sem o "batismo da educação" (Relatório, 1876, anexo 4, p. 94).

A pobreza das famílias é apresentada como um elemento fundamental da infreqüência ou da freqüência irregular às aulas e, ao mesmo tempo, é um fator que inviabilizava a cobrança das multas, ocorrendo, portanto o não-cumprimento da lei. A pobreza é referida tanto pela falta de vestimentas para os meninos comparecerem à aula como pelo uso indiscriminado do trabalho infantil. No seu relato de 1868, o presidente José da Costa Machado de Souza afirma:

A notavel falta de freqüência que se tem dado nas escolas d'instrução primária, o digno diretor entende, que é conseqüência da pobreza, porque os pais empregando seos filhos nos serviços à que se consagrão para poderem alimentar-se e as suas famílias, não lhe sobrando recursos para sustental-os e vestil-os nas povoações, deixão de mandal-os a escola. (Relatório, 1868, p. 21)

Não somente quase todos os relatórios fazem referência à pobreza como também várias correspondências de professores justificavam a ausência dos seus alunos em razão desse fator. Esse é o caso da professora Raymunda Franco, que, tendo sido interrogada a respeito da freqüência de seus alunos, encaminha correspondência ao inspetor em 18 de março de 1887 afirmando que "[...] os pais não estão mandando os filhos para a escola por que os meninos tem que ir para a cidade vender leite" (Seção Provincial, IP 1/1, caixa 58, p. 18).

Também o registro da pobreza pode ser verificado nos mapas elaborados por visitadores e/ou inspetores escolares e que estão anexados aos relatórios encaminhados aos presidentes de província. Assim o fez o capitão José Roiz Lages em 12 de maio de 1844 em relação a uma aula pública localizada próximo a Ouro Preto.
A tradição da historiografia, de reproduzir o registro onde está presente uma identidade entre escravos e negros, vem de longa data. Embora haja poucos estudos relativos a escravos brancos, sabe-se que tal fato ocorreu, como demonstra Horácio Gutiérrez em relação ao Paraná (1988), mesmo que, pelas evidências, essa prática tenha sido bastante restrita. A escravidão dos grupos indígenas também se deu em bem menor proporção que com os africanos. Assim, os africanos constituíram o grupo preponderante de pessoas escravizadas, cuja regulação do tráfico se fez a partir de uma lógica mercantil específica. Entretanto, isso não é suficiente para refletir sobre a constante sinonímia entre negros e escravos.

Podemos identificar outros fatores; um deles está associado à tradição historiográfica de abordagem marxista cuja ênfase caracterizou-se pela análise das relações de trabalho sem a problematização das relações interétnicas. Outro fator é analisado por Silvia Hunold Lara (1989): a influência das idéias raciais de fins do século XIX na justificativa da escravidão a partir do argumento da raça negra como raça inferior. Sem dúvida a influência das teorias raciais nos registros documentais é abundante para o final do século XIX e particularmente o para período republicano, mas também há de se destacar que os relatos de viajantes, desde o início do século XIX, faziam referência indiscriminada de negros como escravos; além do mais, tais relatos foram tomados como fonte documental por diferentes pesquisadores. Ilka Boaventura Leite (1996) afirma em sua pesquisa que tais relatos foram referência para estudiosos como Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, entre outros. Contudo, podemos falar de uma apropriação diferenciada, seja para confirmar a inferiorização dos negros (Nina Rodrigues), para afirmar a democracia racial (Gilberto Freyre) ou para denunciar o racismo (Bastide, Fernandes, Cardoso, Ianni).

Por sua vez, a elaboração de novas abordagens na historiografia da escravidão, a partir dos 80 do século XX, possibilitou em parte um redimensionamento da análise do processo escravista brasileiro, embora isso não tenha significado uma nova abordagem para a história dos negros na perspectiva de relações interétnicas ou mesmo de superação do reducionismo da história dos negros a história da escravidão. Apesar de Hebe Mattos (1997) observar que são raros os registros de convivência interétnica fora da clássica relação senhor-escravo, é preciso refletir também que tradicionalmente não foram produzidas problematizações sobre essa temática, de maneira que possibilitassem outra exploração das fontes documentais.

A ausência de impedimentos para as crianças negras freqüentarem a escola imperial possibilita refletir que, no Brasil, os debates sobre civilizar pela escola, "nivelar as faculdades morais dos brasileiros", a expansão dos saberes elementares e a estatização do ensino foram perpassados por um conteúdo étnico e racial altamente significativo. A ênfase na necessidade de produção de uma homogeneização cultural significou a desqualificação das praticas culturais da população à qual se destinava a instrução pública elementar: a população de crianças negras, mestiças e pobres.

Curioso observar que, na organização da documentação sobre a instrução pública de Minas Gerais, destaca-se um importante diferencial nas escritas dos professores e/ou inspetores antes e depois da legislação provincial de 1835. Até esse ano, é possível encontrar registros da cor dos alunos e de freqüência de escravos;3 não identifiquei nenhum documento posterior com tais dados. Minha interpretação é de que somente a partir da lei provincial n. 13, de 1835, é que fica realmente oficializado em Minas Gerais o impedimento de os escravos freqüentarem uma aula pública, embora não haja restrições a aulas particulares, havendo até uma lei que possibilitava tal acesso. De acordo com a lei mineira n. 1.064, de 4 de outubro de 1860 (artigo 11), tem-se que: "É livre o ensino da instrução primária em casas particulares que estiverem distante das povoações uma légua e a ela podem concorrer quaisquer pessoas de ambos os sexos, sem distinção de idade, estado, classe ou condição".4

Contudo, é menos freqüente encontrar escritas de relação de alunos de aulas particulares do que das públicas, uma vez que os professores de tais aulas não recebiam do Estado e não precisavam comprovar número de alunos. Apenas no caso de receberem subvenção por alunos pobres é que havia maior rigor na fiscalização. Ainda assim, encontramos, em 1852, registros do tipo "em todas as fazendas há mestres particulares da família. Os próprios escravos têm seus mestres. Não é raro encontrar-se nas tabernas das estradas, nas lojas de sapateiros e alfaiates 2, 3, 4 e mais meninos aprendendo a ler" (Relatório, 1852a, p. 4).

Quanto ao registro da cor,5 sua presença na documentação até 1835 se fazia aleatório e de acordo com cada professor, embora bastante presente. Não havia ainda normalização para a informação dos dados de alunos. Nos mapas de freqüência encontrados, era significativa a presença de crianças negras e mestiças. É o que constata o mapa da aula de primeiras letras de quatro professores da Villa de Paracatu do Príncipe, em novembro de 1823. Reunindo os dados tem-se:6
Considerações finais

Para finalizar, destaco algumas questões de reflexão sobre instrução pública no Brasil do século XIX. Apesar de a escola elementar pública apresentar-se como instituição de característica essencialmente popular, quais foram os limites de sua efetivação junto à população livre? Nos documentos investigados, observa-se uma imensa dissonância entre os discursos e as ações efetivas para consolidar a instrução.

Entre os muitos motivos podem-se destacar basicamente quatro: a estrutura política do período imperial; o contexto material das escolas; as condições de freqüência à aula e a situação dos professores. Sobre o primeiro, percebe-se que, de maneira geral, as elites se mostraram empenhadas na difusão da instrução - manifestavam proposições integradas ao discurso ocidental do lugar da instrução para a civilização, tinham previsão de gastos para a educação e elaboravam de maneira crítica seus registros sobre a precariedade do estado geral da instrução. Entretanto, a estrutura política e as redes de interdependência (Elias, 1993) tecidas pelas próprias elites contribuíam muitíssimo pouco para a efetivação e o avanço de qualquer proposição.

Os assuntos da instrução eram centralizados na figura do presidente da província. No caso de Minas Gerais, como medida administrativa adotou-se a divisão da província em círculos literários (1835) e, para efetivação da fiscalização do ensino, a criação de órgãos como a Diretoria Geral da Instrução Pública (1848) e a Inspetoria Geral da Instrução (1872); isso, contudo, não favoreceu a autonomia dos administradores. Por sua vez, a administração imperial foi caracterizada pela alta rotatividade na ocupação de cargos, seja de presidente ou de outros cargos, fato característico da cultura política imperial do clientelismo.

Acrescem-se a isso questões como vastidão do território, rarefação da população e precária infra-estrutura (de estradas e transportes) e, conseqüentemente, dificuldades na abertura de escolas e fiscalização de seu funcionamento. Em 1881, um inspetor registrou em seu relatório que a província possuía apenas uma escola pública para 328 crianças; dessas, somente 23 freqüentavam as aulas, sendo que 21 nada aprendiam e, portanto apenas duas estavam prontas (Relatório, 1881, p. 52). Em 1882, outro inspetor atestava que Minas Gerais possuía 75% de população analfabeta (Relatório, 1882, p. 8).

Um segundo problema era que, apesar de os governos disponibilizarem verbas para a instrução pública, as condições de funcionamento das escolas eram muito precárias. Destaca-se a falta de prédios próprios (grande parcela das aulas acontecia na casa do professor) e de material escolar (pela documentação, havia dificuldade de se fazer chegar às casas, entraves na sua aquisição, o pedido do professor não era atendido ou ainda extravios).

Numa terceira ordem de considerações, tem-se que as condições de freqüência à escola eram rodeadas de muitos problemas; desde questões mais práticas, como dificuldade de locomoção até a aula do professor (chuva, alagados, matas, caminhos não seguros), até as mais conflituosas relações ocorridas entre o Estado e as famílias. Estas não enviavam seus filhos às escolas por diferentes motivos: pobreza (falta de roupa adequada, trabalho, fome); indiferença quanto à importância da instrução; dificuldades com o professor e seu método. No relato de 1867 do diretor-geral da Instrução Pública, Firmino Antonio de Sousa, ele afirma:

Já se vê, pois, que a instrucção bebida nas escolas primarias quasi que de nenhuma utilidade é na prática da vida, e talvez seja este o principal motivo que as classes inferiores de nossa sociedade olhão com tanta indiferença para a educação literaria que o estado gratuitamente lhes offerece, e cujas vantagens práticas elas ainda não conseguirão descobrir. (Relatório, 1867, p. 2)

Contudo, ao mesmo tempo podemos encontrar vários abaixo-assinados de pais pedindo a abertura de aulas públicas, seja do sexo feminino ou masculino, sendo um procedimento inclusive previsto em lei (Veiga, 2002). As dificuldades com os professores vêm de relação pessoal, em casos como violência física (castigo, abuso da palmatória, estupro), de embriaguez ou mesmo das limitações dos métodos pedagógicos, pela demora na aprendizagem da leitura, escrita e contas. Em 1873, o inspetor Antonio de Assis Martins relata:

[...] entre nós, geralmente fallando, o menino matricula-se na escola na idade de cinco para seis annos e aos doze mal sabe soletrar, e quando é feliz, assigna com bastante desigualdade seu próprio nome. Seis annos de aprendizagem para tão mesquinho resultado forçosamente deve desanimar, principalmente a essa classe pobre, que vê no filho mais um recurso, de que póde dispor, para ajudal-o a carregar o peso de uma vida, toda cheia de fadigas e necessidades. (Relatório, 1873, p. 8)

Assim, o quarto problema da insuficiência do ensino diz respeito aos professores. Do ponto de vista da legislação, a regulamentação do magistério é a mais abundante de todas. Houve uma clara opção política em regulamentar o emprego público do professor em detrimento de sua formação. De um lado, proliferavam-se arranjos para a manutenção do cargo por meio de disputas e querelas políticas locais; de outro, tem-se grande precariedade e irregularidade de funcionamento das escolas normais. Acresce-se ainda que, no caso de Minas Gerais, até 1872 o currículo não ultrapassava o estudo de método de ensino e as próprias disciplinas da instrução elementar. Embora os relatores sejam quase unânimes em afirmar ser esse um dos principais problemas da instrução, mesmo com as alterações produzidas os dados continuavam a revelar uma aprendizagem rotineira e limitada, fundada principalmente na memorização. Havia ainda problemas relativos a baixos salários, pagamento irregular e desinteresse pela profissão.

Ainda assim, os discursos dos gestores enfatizavam a educação popular como condição de progresso e civilização. No relatório de 1875, o vice-presidente Francisco Leite da Costa Belém falava do empenho em generalizar a instrução, de modo a "patentear a todo cidadão, ainda ao de mais humilde e obscura procedência" (Relatório, 1875). Contudo, ao que tudo indica, "os humildes e de obscura procedência" não tiveram condições de permanência em uma instrução regular.

[...] devo, entretanto conffessar que a indole de nossas crianças, máxime em vista da educação doméstica que recebem; a falta de limitação de edade para a freqüência das escolas confiadas a tal direcção, e o fato de serem os alumnos que a freqüentam de todas as procedências, o que é, sem dúvida um elemento poderoso de desordem e perturbação da indispensável disciplina escolar, constituem embaraço sério a realização d'esse systema de direção, capaz de fructificar proveitosamente só nas escolas freqüentadas por crianças, escolhidas em vista da edade ou dos precedentes de família. (Falla, 1882, p. 9, grifos meus)

Observa-se, assim, que os mecanismos internos e cotidianos de exclusão há muito estiveram presentes na história da escola brasileira. Portanto, às questões aqui identificadas para explicar a precariedade da escola pública elementar do século XIX deve-se acrescentar principalmente o problema da clientela escolar, suas cores e pobreza, em que a chamada má procedência se apresentava como impedimento social. Pode-se dizer que a escola imperial fracassou na sua missão de "educar as procedências".

Dessa maneira, ao ser anunciada a República, já se tinha um considerável acúmulo de experiências relativas aos processos de discriminação e preconceitos também no ambiente escolar. Isso ensejou a busca de técnicas voltadas à depuração dos alunos de "todas as procedências", a partir da elaboração de testes escolares e da instituição da escola seriada (grupos escolares) como práticas científicas de organização escolar. Para a escola pública deixar de ser indigente, foi necessário que também a sua clientela fosse outra - crianças de famílias de "boa procedência" -; pelo menos é o que podemos verificar, em geral, nos alunos das escolas públicas brasileiras, principalmente das principais capitais, até por volta da década de 60 do século XX. É o que podemos conferir, entre outras possibilidades de fontes, na imagem a seguir, de uma sala de aula de um grupo escolar de Belo Horizonte na década de 20 do século XX.
Referências bibliográficas

ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. [ Links ]

ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da instrução pública no Brasil (1500-1889). História e legislação. São Paulo: EDUC; Brasília: INEP/MEC, 1989. [ Links ]

ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. Projetos para o Brasil (Organização de Miriam Dolhnikoff). São Paulo: Companhia das Letras, 1998. [ Links ]

ELIAS, Norbert. O processo civilizador, v. 2: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. [ Links ]

________. Os alemães. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. [ Links ]

________.; SCOTSON, John. L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. [ Links ]

FONSECA, Marcus Vinicius. Pretos, pardos, crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. 256 p. [ Links ]

GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. Negros e educação no Brasil. In: LOPES, Eliane Maria Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 325-346. [ Links ]

GUTIÉRREZ, Horácio. Crioulos e africanos no Paraná, 1798-1830. Revista Brasileira de História, v. 8, n. 16, p. 161-188, mar./ago. 1988. [ Links ]

HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. [ Links ]

LARA, Silvia Hunold. Trabalhadores escravos. Trabalhadores. Campinas: Fundo de Assistência à Cultura, 1989. [ Links ]

LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia de viagem. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996. [ Links ]

MAESTRI, Mario. A pedagogia do medo: disciplina, aprendizado e trabalho na escravidão brasileira. In: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara (Orgs.). História e memórias da educação no Brasil. V. 1. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 192-210. [ Links ]

MARTINEZ, Alessandra Frota. Educar e instruir: a instrução popular na Corte imperial, 1841-1889. Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1997. 300 p. [ Links ]

MATTOS, Hebe de Castro. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 337-385. [ Links ]

________. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. [ Links ]

________. Remanescentes das comunidades dos quilombos: memórias do cativeiro e políticas de reparação no Brasil. Revista USP, n. 68, p. 104-111, dez. 2005/fev. 2006. [ Links ]

MORAES, Christianni Cardoso. Ler e escrever: habilidades de escravos forros? Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850. Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 36, p. 493-504, set./dez. 2007. [ Links ]

MOYSÉS, Sarita M. Affonso. Leitura e apropriação de textos por escravos e libertos no Brasil do século XIX. Educação & Sociedade, n. 48, p. 200-213, ago. 1994. [ Links ]

MULLER, Maria Lucia. Professoras negras na Primeira República. Cadernos PENESB, Niterói: Intertexto, 1999. [ Links ]

MUSSA, Alberto Baeta Neves. O papel das línguas africanas na história do português do Brasil. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1991. 242 p. [ Links ]

PAIVA, Eduardo França. Leituras (im)possíveis: negros e mestiços leitores na América Portuguesa. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL POLÍTICA, NAÇÃO E EDIÇÃO, Belo Horizonte, 2003. Anais... Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais, 2003. [ Links ]

PRIORE, Mary del (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. [ Links ]

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: . (Org.). História da vida privada 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 173-244. [ Links ]

VEIGA, Cynthia Greive. Cidadania e educação na trama da cidade: a construção de Belo Horizonte em fins do século XIX. Bragança Paulista: EDUSF, 2002. [ Links ]

________. História social da infância: crianças pobres e não brancas na institucionalização da instrução pública elementar em Minas Gerais, século XIX. Relatório (Pesquisa de pós-doutoramento) - Departamento de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. [ Links ]

________. A produção da infância nas operações escriturísticas da administração da instrução elementar no século XIX. Revista Brasileira de História da Educação, n. 9, p. 73-108, jan./jun. 2005. [ Links ]

VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América portuguesa. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. 553 p. [ Links ]

Fontes documentais

COLEÇÃO das Leis Mineiras, 1835-1890. [ Links ]

COLLEÇÃO das Leis do Império do Brazil de 1827. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1878. [ Links ]

Correspondência referente à Inspeção de Ensino 1ª à 4ª circunscrições. Secretaria do Interior, 1899. SI 3958. [ Links ]

FALLA dirigida á Assembléa Legislativa Provincial na sessão ordinaria do anno de 1848 pelo presidente da província, Bernadino José de Queiroga. Ouro Preto: Typografia Social, 1848. [ Links ]

FALLA que o exm. Sr. Dr. Theophilo Ottoni dirigio á Assemblea Provincial de Minas Geraes, ao installar-se a 1.a sessão da 24.a legislatura em 1.o de agosto de 1882. Ouro Preto: Typ. de Carlos Andrade, 1882. [ Links ]

PRESIDÊNCIA da Província (PP) 1/42, caixa 01, envelope 07. [ Links ]

PRESIDÊNCIA da Província (PP), caixa 08, pacotilha 09. [ Links ]

PRESIDÊNCIA da Província (PP) 1/42, caixa 14, envelope 07. [ Links ]

O TECER DO PLANO DE CARREIRA DO MAGISTÉRIO: TEMPO LENTO



O TECER DO PLANO DE CARREIRA DO MAGISTÉRIO: TEMPO LENTO




Quase 12 anos depois de sancionada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96) permanece ainda uma grande bruma sobre o que de fato foi feito em relação aos planos de carreira do magistério da Educação Básica. Nem o MEC, nem a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) parecem dispor de uma radiografia fiel, com dados consolidados sobre o que, concretamente, acontece Brasil afora. O controle, na verdade, não cabe ao Ministério, menos ainda à CNTE. Em respeito à autonomia das esferas administrativas, é papel de cada sistema de ensino promover a valorização dos profissionais da educação, nos termos de seus estatutos e planos da carreira (LDB 9.394, art. 67). E o papel da sociedade, representada nos conselhos estaduais e municipais de educação, seria o de zelar pelo cumprimento da lei.
Não é o que acontece. O que se assiste hoje é, no mínimo, paradoxal. São Paulo, o estado mais rico da federação, é acusado pelas associações de classe de praticar um dos piores planos de carreira do país. Minas Gerais e Rio Grande do Sul, outros entes federados de peso, também vão mal e não são exemplos isolados.
Muitas das questões que recebem os holofotes com a polêmica criada em torno do piso nacional para os professores, sancionado pelo Planalto em 16 de julho deste ano, são entraves também no âmbito de estados e municípios. A começar pela distinção entre o conceito de piso salarial e vencimento inicial de carreira. A pressão corporativa das entidades sindicais aponta para a visão de vencimento inicial, excluídas as gratificações, que mais consideram um arremedo. Na visão dos gestores, costuma valer o contrário, o sentido de piso como valor mínimo, sem importar se em sua composição estão incluídos qüinqüênios, sexta parte ou outras formas de gratificação funcional.
O tempo dedicado à regência de classe e às atividades de planejamento e preparação de aulas, a famosa hora-atividade, também pontua debates sobre a composição da jornada de trabalho. E ao lado de questões antigas, surgem outras bem aos moldes dos tempos atuais, como a de "valorizar o mérito pela dedicação, assiduidade, pontualidade e desenvolvimento profissional", prevista no Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, uma das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação. Com a questão da qualidade em pauta, também ganha adeptos a idéia da certificação, defendida pelo MEC em 2003, pela Portaria 1.403, e que volta à cena com o projeto de Lei 1.088/2007, do deputado Gastão Vieira (PMDB/MA), em tramitação no Congresso. A proposta é instituir, como requisito para o exercício do magistério, a aprovação em exame nacional, aplicado pela União.

Que eixos, afinal, devem nortear as diretrizes e políticas de carreira do magistério, com a perspectiva de melhorar a qualidade da Educação Básica e efetivamente valorizar a carreira docente?
Avanços e caminhos
Apesar de referências a localidades onde a função docente ainda não é regulada, nem de fato, nem de direito, há o reconhecimento de que, entre tropeços e descaminhos, em pouco mais de uma década houve alguns avanços em relação às políticas de carreira.
O Acre é um exemplo recorrente. Em 1999, houve o esboço de um plano plurianual, levado a cabo a partir de 2004 e previsto para ir até 2007. Em menos de quatro anos, o estado da região Norte instituiu novas regras para a carreira do magistério da rede estadual e quase triplicou o piso do professor com formação universitária, hoje o melhor do país: R$ 1.675,79 para 30 horas semanais, segundo levantamento do Consed. Na qualificação docente, o salto impressiona. O número de professores leigos praticamente zerou e aqueles que possuem graduação têm acesso à formação continuada, feita em parceria com o MEC. Dos 7,5 mil professores da rede, cerca de 4,2 mil docentes já participaram da iniciativa. Em 99, só 16% tinham curso superior.


César Callegari, presidente do Conselho Nacional de Educação: importância de ações conjugadas para uma educação de qualidade
O esforço vai além. Os professores sem habilitação superior têm a oportunidade de ingressar na Universidade Federal do Acre (UFA), que em um ano ampliou de 3,5 mil para mais de 8 mil o número de matrículas. Entre 2005 e 2006, cerca de 3 mil professores concluíram o terceiro grau. O governo também fomenta o acesso do magistério a bens culturais, mantém programas de formação que são extensivos aos funcionários administrativos e amplia a parceria com a UFA para a realização de pesquisas voltadas à melhoria da Educação Básica.
Os resultados do Ideb em 2007 mostram o impacto das ações na qualidade do ensino ofertado. O estado alcançou as metas fixadas para a 4ª série do ensino fundamental em 86,4% dos municípios. Na 8ª série, ficou com o segundo maior índice regional: 81% dos municípios alcançaram as metas do Ideb.

O desempenho confirma a tendência verificada em 2006, quando o Acre registrou a maior evolução entre os alunos de 4ª série, se comparado à amostra ajustada do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2003. Em língua portuguesa, os estudantes tiveram aumento de 12,4 pontos, a melhor variação absoluta do país, segundo o Inep/MEC.
Em meio a tantas ações articuladas, o Acre deu respostas a reivindicações históricas, mas também incorporou novidades. Aderiu à idéia da promoção por mérito, com iniciativas como o Prêmio de Referência em Gestão Escolar, criado em 2005. "É uma versão estadualizada, que prevê o pagamento de bonificações a professores e funcionários, com base nos mesmos critérios estabelecidos para a premiação nacional", explica Jean Mauro Morais, diretor de gestão institucional da Secretaria de Educação do Acre. Faz menção ao Prêmio Nacional de Referência em Gestão Escolar, lançado por Consed, Undime, Unesco e Fundação Roberto Marinho, que desde sua criação, em 1998, somou a participação de 15.663 escolas do país. Mas está longe de traduzir consenso.

Direito de aprender
O movimento sindical se opõe. E há os que desconfiam. "Tenho certo ceticismo em relação à promoção por mérito, porque já vi acontecer e nem por isso colhemos resultados melhores, com avanços na qualidade da educação", diz César Callegari, presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. "É uma idéia que vem da cartilha da gestão empresarial, agora transportada para a educação. No entanto, todos os exemplos de sucesso na educação mostram a importância de múltiplas ações conjugadas. Falar em mérito sem discutir jornada, formação e salário não resolve, assim como não resolve ampliar a autonomia escolar sem discutir a descentralização administrativa e financeira", completa.
A secretária estadual da Educação de São Paulo, Maria Helena Guimarães, defende a idéia e trata de ampliá-la com a recém-aprovada política de bônus, com premiação em dinheiro a professores e funcionários de escolas que atingirem metas de qualidade. Na rede estadual paulista, o conceito de bônus passou a valer em 2000 com a premiação por assiduidade, como proposta para diminuir o absenteísmo. Agora, contabiliza também o desempenho dos alunos no Saresp, além da taxa de reprovação, evasão e fixação dos professores na escola.
São Paulo deve desembolsar entre R$ 500 milhões e R$ 700 milhões para o pagamento do bônus, que pode significar o equivalente a até 2,9 salários a mais para os cerca de 300 mil funcionários do ensino estadual.
A bonificação começa a ser concedida em fevereiro de 2009, quando poderão ser comparadas as notas do Saresp e as avaliações medidas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (Idesp).
No centro da questão, segundo a secretária Maria Helena, está a proposta de valorizar os que mais se dedicam e enfatizar o trabalho coletivo. Mas não é só. "Nossa política tem por princípio o direito do aluno de aprender", diz.
Queda de braço
Na visão sindical prevalece a idéia de que a defesa do mérito quer mesmo é personalizar culpas e fazer com que o Estado não assuma suas responsabilidades institucionais. Os defensores argumentam a favor de papéis compartilhados e apelam para a motivação.

"É claro que o professor não está isento de qualquer compromisso com o processo do ensino e sua qualidade. Evidente que ele tem responsabilidades e o bom professor tem de ser valorizado", pontua o senador Cristovam Buarque, autor do projeto de lei para a criação da carreira nacional do magistério e a implantação do horário integral na Educação Básica.
Disputas à parte, o que importa é saber o que isso representa para a qualidade de ensino e para a tão propalada e pouco efetivada valorização da carreira docente. A experiência do Banco Mundial em relação às premiações não foi das melhores e esses maus resultados são reverberados pela análise do programa Sigma (Support for Improvement in Governance and Management), financiado pela União Européia e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Nos últimos dez anos, o Banco Mundial investiu significativamente na reforma do funcionalismo, tentando valorizar critérios de eficiência. No balanço, conclui que muitas das intervenções foram inócuas. "Essa reforma não gera, com freqüência, melhorias sustentáveis no desempenho do governo", diz o relatório do Banco. E mais: "ainda não se tem uma resposta definitiva com respeito a alguns dos elementos mais controversos da nova administração pública - incluindo a utilização de mecanismos de mercado, como o pagamento por desempenho".
Partidarização
A análise do programa Sigma é contundente. Sustenta que os sistemas de remuneração por desempenho adotados no funcionalismo público por vários países desde meados da década de 1980 falharam em seus objetivos. Prêmios por desempenho não apenas tiveram impacto nulo ou insignificante na motivação dos trabalhadores e na qualidade dos serviços prestados, como também geraram efeitos perversos. Para Francisco Cardona Peretó, autor do estudo, o modelo é caro, concorre para o acréscimo da carga burocrática e, "resultante de seu caráter inevitavelmente subjetivo", contribui para a partidarização da máquina do Estado.
O norte-americano National Bureau of Economic Research defende a política. Cruzou dados relativos ao desempenho dos estudantes e à evolução do pagamento de bônus e concluiu que o desempenho dos alunos é melhor nas escolas em que os professores recebem incentivos individuais.O estudo comparou levantamentos idênticos, realizados em 2000 e 2006, e declara que é impossível deixar de relacionar a melhora no desempenho dos alunos ao incentivo financeiro concedido?aos professores, "porque fica evidente que eles se dedicam mais, por receber o incentivo. O benefício é claro", registra.
Movimento reverso
Ex-candidato à presidência da República e ex-ministro da Educação do governo Lula, o senador Cristovam Buarque rema contra a maré. Em projeto de lei encaminhado ao Congresso em agosto, propõe federalizar a Educação Básica e pede a criação do Programa Federal de Educação Integral de Qualidade para Todos (PFE), além de defender a Carreira Nacional do Magistério (CNM).
Para o senador, intervenções pontuais e de caráter remediativo não são solução para os problemas da educação. É preciso avançar, com reformas de fôlego. "É o impasse do período Juscelino. O Brasil ficaria para trás com uma economia agrícola e rural ou daria um salto rumo à industrialização? Com a educação, é a mesma coisa. Queremos dar um salto para uma economia em que o capital é o conhecimento ou deixar como está? Fiz a proposta, disse como fazer e quanto custa. A diferença é que, em 1955, Juscelino não se preocupou com a estabilidade monetária e, agora, temos de ter esse compromisso."
O programa propõe a criação de concurso público nacional para a contratação de 100 mil professores, anualmente, com a previsão de, a cada ano, incorporar 3 milhões de alunos ao ensino fundamental nas cidades onde for instituído o regime integral. Com duração de 20 anos e implantação progressiva nos municípios, escolhidos segundo critérios a serem fixados pelo MEC, o modelo defende a adoção do plano de carreira do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, que resultaria , segundo o senador, num salário médio de R$ 4 mil para o magistério.
"Não é um salto repentino. É um programa de duas décadas, talvez mais, porque hoje temos 48 milhões de alunos matriculados, 2,6 milhões de professores e 180 mil escolas. A estratégia é implantar os programas por conjuntos de cidades, rigorosamente e no ritmo possível", defende.
A implantação da CNM e do PFE custaria R$ 10 bilhões ao ano - R$ 8 bilhões para o pagamento de salários do magistério e R$ 2 bilhões para edificações e equipamentos. Hoje, o orçamento do MEC é de R$ 34 bilhões e as verbas totais destinadas à educação no país estão em torno de 4% do Produto Interno Bruto, que foi de US$ 1,3 trilhão.

Herança colonial: A remuneração dos professores e a indefinição entre o centralismo e a autonomia administrativa são gargalos da política educacional




A Gravura retrata práticas educacionais em 1827: método lancasteriano fazia melhores alunos darem aulas.Há evidências de que mesmo as escolas jesuíticas mantinham professores laicos, contratados e remunerados pela atividade. É o que registra História da instrução no Brasil, 1500-1889 (José Ricardo Pires de Almeida. Brasília/São Paulo, MEC/Inep/Educa, 1989), um dos clássicos que discorrem sobre os primeiros anos da educação brasileira.
Com a reforma pombalina e o fim do ensino jesuítico, em meados do século 18, o Brasil colonial atravessa quase meio século de desorganização e decadência do ensino. O panorama começaria a mudar com a instituição das aulas-régias e a concepção de mestre-escola, no início do Império.
Mas a profissão docente estava longe de assegurar reconhecimento social. Só em 15 de outubro de 1827 é que o decreto imperial outorgado por D. Pedro I cria as Escolas de Primeiras Letras e define, agora por força de lei, questões relativas ao exercício de professores e mestras.
Tido como marco na educação imperial, traz em seu artigo 3º as regras para a remuneração: "Os presidentes, em Conselho, taxarão interinamente os ordenados dos Professores, regulando-os de 200 mil réis a 500 mil réis anuais, com atenção às circunstâncias da população e carestia dos lugares, e o farão presente à Assembléia Geral para a aprovação". E institui, pelo artigo 13, a isonomia salarial: as mestras não poderiam receber menos que seus pares, os professores.

O decreto imperial também impõe regras para admissão, mediante exames de aprovação, e, apesar de transferir o ônus integralmente aos professores, aponta para a necessidade de formação. "(...) os professores que não tiverem a necessária instrução deste ensino irão instruir-se em curto prazo e à custa dos seus ordenados nas escolas das capitais" (artigo 5º).
Em 1834, o Ato Adicional estabelece mudanças na Constituição outorgada 10 anos antes e determina a criação da Escola Normal, que passa a funcionar no ano seguinte. Diversos autores situam as escolas normais como divisor de águas. É o marco a partir do qual avançou a formação docente e a própria concepção da atividade. O livro 500 anos de educação no Brasil (Autêntica, vários autores) sublinha a transformação que começava a se desenhar: "As Escolas Normais estão na origem de uma profunda mudança, de uma verdadeira mutação sociológica do pessoal docente primário. Sob sua ação, os mestres miseráveis e pouco instruídos do início do século 19 vão, em algumas décadas, ceder lugar a profissionais mais formados para a atividade docente".
Déjà vu
O mesmo Ato desencadeia amplo debate sobre centralização e descentralização, ao transferir às Assembléias Provinciais a responsabilidade pela formação docente. "Digerindo mal o liberalismo da época, delegou às províncias essa responsabilidade, isentando o poder central de uma missão que lhe seria própria, deixando a educação primária à própria sorte", definiu Jorge Werthein, da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla), em relação ao cenário do século 19.
Se, de um lado, o Ato pretendia fomentar a formação de profissionais do magistério e conceder maior autonomia às províncias, de outro concorreu, segundo Werthein, para fragmentar os parcos projetos e recursos existentes, contribuindo para a proliferação de leis contraditórias. Na prática, pôs por terra a instrução elementar no Brasil imperial.
De 1831 a 1836, os relatórios do ministro do Império Lino Coutinho denunciavam a precariedade do ensino elementar no país, responsabilizando em grande parte as municipalidades pela ineficiente administração e fiscalização. Também apontavam o baixo salário dos professores, a excessiva complexidade dos conhecimentos exigidos pela lei - que dificultavam o provimento de professores - e a inadequação do método adotado.
Em maio de 1840, sob a regência de Araújo Lima, a chamada Lei Interpretativa do Ato Adicional revisou alguns pontos da reforma de 1834 e limitou o poder provincial. Nem por isso trouxe melhorias à qualidade da educação elementar.
Em 1852, em relatório feito ao ministro do Império, após visitar diversas escolas em diferentes províncias, o poeta e teatrólogo maranhense Gonçalves Dias (1823-1864) refere-se a um "quadro de entorpecimento e descaso" e aponta algumas das causas do fracasso do ensino, entre elas os baixos salários dos professores.
Para Bertha Valle, diretora da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae) no Rio de Janeiro, o problema tem mesmo raízes históricas: os investimentos dedicados à educação, ou, melhor dizendo, a falta deles.
E nem é preciso ir tão longe. Basta voltar aos anos 70, em plena ditadura militar, quando a Lei 5.692 determinou a escolaridade obrigatória de oito anos de ensino de 1º grau para crianças de 7 a 14 anos.
"Dobrados os anos de escolaridade, com ampliação da rede física escolar, aumento de mais do dobro dos profissionais do magistério, não houve um crescimento proporcional dos recursos financeiros destinados à educação. Praticamente, se mantiveram os mesmos", sustenta.
É uma verdade incontestável. Difícil falar em valorização do magistério e qualidade de ensino, se os sistemas públicos não investem mais recursos na educação e o financiamento continua insuficiente.
"Não nos iludimos quanto à situação salarial do professor para os próximos anos, nem com a elevação dos níveis de desempenho dos alunos. Enquanto não tivermos recursos para valorizar financeiramente o professor e instituir as condições de ensino dos países com excelência educacional, continuaremos a ter nossos melhores profissionais do magistério migrando para outros campos de trabalho e alunos com desempenho crítico", completa Bertha.

E para justificar os baixos salários, a dirigente da Anpae lembra de privilégios freqüentemente invocados, como o direito à aposentadoria especial, férias mais prolongadas do que as da quase totalidade dos trabalhadores e direito constitucional de acumulação de dois cargos públicos, assegurado pela primeira vez na Constituição de 1934.

10 de abr. de 2009

Cachaça, tributos e salário dos professores no Brasil colonial




Cachaça, tributos e salário dos professores no Brasil colonial

Ainda que desde a Antiguidade Clássica a educação estivesse presente nos interesses de filósofos, como Platão ou Marco Túlio Cícero, ou então, vez por outra, nas ações dos governantes e de instituições religiosas, isso nunca significou uma regra a ser seguida. Apenas recentemente, em termos históricos, educar a sociedade tornou-se uma prática respeitada. O curioso é que a constatação sobre isso surgiu não propriamente de educadores, filósofos ou governantes, mas sim de um sujeito cujos interesses estavam voltados para a economia. Seu nome: Thomas Robert Malthus.

No livro intitulado Ensaios sobre a População, publicado em 1798,Malthus afirma que o maior problema dos governos era a pobreza vivida pela maioria da sociedade, resultado de um processo crônico enfrentado por todos os povos. Segundo o autor, as populações cresciam em progressão geométrica (2, 4, 8, 16, 32, 64...) ao longo do tempo. Já as condições materiais – como alimentação, moradia, saúde entre outros – multiplicavam-se aritmeticamente (2, 3, 4, 5, 6, 7, 8...).

Assim, em todos os momentos da história humana, a pobreza e a miséria existiriam. A única saída, afirmava Malthus, era educar a sociedade – principalmente os mais pobres – para que as pessoas entendessem a origem de seus males e não culpassem os governantes.

A idéia de Malthus não chegava a ser inédita.Esse raciocínio era muito usado, no século XVII, para evitar as revoltas populares que começavam a emergir na Europa e na América. Por exemplo, alguns governos, sob a influência do pensamento Iluminista, adotaram para si a responsabilidade da educação.

Dinheiro vindo da cachaça
Um dos países que instituíram a educação pública foi Portugal, e isso pouco tempo antes da publicação da obra malthusiana. A iniciativa, porém, não visava propriamente à erudição do povo.Quando o rei Dom José I assumiu o trono de Portugal, por volta de 1752, trouxe o Marquês de Pombal para compor seu Conselho de Estado.

Pombal, bastante influenciado pelas propostas dos pensadores iluministas e incluído posteriormente no rol dos chamados déspotas esclarecidos – governantes ou assessores de governantes que, apesar de se apresentarem como seguidores do modelo Absolutista, adotavam certas práticas liberais defendidas pelo Iluminismo –, procurou, entre outras coisas, adotar medidas que minimizassem a influência da Igreja Católica nas orientações governamentais portuguesas.

Uma dessas ações foi a expulsão da Companhia de Jesus do Brasil, na década de 1750.Os jesuítas, entretanto, eram responsáveis por mais de 80% dos poucos colégios no território brasileiro. Sua expulsão criou um enorme problema para a Metrópole, pois não se sabia quem iria assumir o espaço deixado pela Companhia de Jesus.

A solução foi encontrada nos anos de 1762 e 1763. O governo português ficaria responsável pela educação da população no território ultramarino, por meio da criação de escolas públicas.

Se, por um lado, a iniciativa resolvia parte do problema, por outro fazia surgir um imbróglio: para educar, professores deveriam ser contratados, e isso implicaria pagamento de salários.Mas de onde sairia o dinheiro? Nesse período ainda não existia de forma completa a idéia de administração pública ou planejamento administrativo; esses temas foram desenvolvidos nos séculos XIX e XX.



A saída foi a criação de um novo tributo para sustentar essa atividade. Porém, mais uma encrenca tomava vulto: o que poderia ser tributado?
Os escravos já eram objeto de tributação; ouro, diamante, açúcar, charque, passagem dos rios também, além de tantos outros que a lembrança pudesse alcançar.

Sugeriu-se, então, tributar um artigo comum em todo o território brasileiro e que, portanto, geraria renda suficiente para pagar o salário dos professores: a aguardente de cana-de-açúcar, conhecida como cachaça.

Conforme as leis vindas da Metrópole, para cada tonel de 30 litros de cachaça seriam cobrados mil e quinhentos réis (1$500) a título de “subsídio literário” – nome dado a esse novo tributo – e o dinheiro deveria ser revertido ao pagamento dos professores.

A mesma ordem determinou as matérias a serem lecionadas nos cursos: gramática, retórica, álgebra, geometria e história natural; o salário de cada mestre deveria ser de sessenta e dois mil réis (62$000) e as escolas deveriam estar localizadas nas vilas ou aldeias que concentrassem maior número de habitantes.

Por fim, a cobrança desse tributo ficaria a cargo do “contratador das entradas”. Esse profissional era responsável pela cobrança dos tributos referentes a todos os artigos secos e molhados (por exemplo, pólvora e gêneros alimentícios) que entravam numa capitania, sendo o dinheiro arrecadado e posteriormente repassado à Real Fazenda.

Algumas coisas podem ser pensadas a partir daí. A primeira delas foi a opção por esse produto.Ao escolher a cachaça como item a ser tributado, o governo português criou uma situação em que todos – ou quase todos – os habitantes do Brasil contribuiriam, de maneira forçada ou não, para a educação pública. Em outras palavras, constituía- se uma situação em que toda a população favorecia a coisa pública, isso porque o vinho era um artigo muito caro, mesmo para as elites coloniais, e a aguardente tomava seu lugar em larga escala.

A segunda diz respeito aos salários dos professores. Sessenta e dois mil réis era o soldo pago a um alferes da tropa regular, e alferes era um posto similar ao do tenente – não podemos esquecer o mais famoso alferes da nossa história, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Dessa maneira, se a comparação ainda fosse válida para os dias de hoje, um professor de ensino fundamental estaria ganhando em torno de R$ 2 mil, o que não seria mau negócio.

Por fim, ainda que seja quase uma piada, surge uma curiosidade. Se o salário dos professores era pago por meio da tributação da cachaça, pode-se concluir que, quanto maior fosse o consumo desse produto, mais dinheiro existiria para a educação pública. Assim, pergunta-se: será que aumentou o número de bebedores no Brasil colonial por causa da boa educação do povo? Infelizmente, não nos é possível responder.

De qualquer modo, o “subsídio literário”, assim como todos os outros impostos, foi cobrado no território até 1831, quando teve início a discussão que desaguou no Ato Adicional de 1834 – grande reforma político-administrativa do Período Regencial. A partir de então, o dinheiro usado na educação passou a sair do orçamento governamental.

Retornando ao tema principal, pode-se perguntar se as matérias que foram escolhidas para as escolas da época eram as ideais; pode-se perguntar também, caso seja possível calcular, sobre o número de alunos que freqüentavam essas escolas no período e a população aproximada do Brasil dos setecentos; pode-se, enfim, discutir se a forma encontrada depois foi a ideal. Mas isso...isso...bom, isso já é uma outra história. Fica, portanto, para uma próxima vez.

Antonio Marcelo jackson F. da Silva é Bacharel em História Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),Mestre e Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Professor da Faculdade de Ciências Econômicas de Valença-RJ (FACEV